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Entrevista a Charles Metcalfe à Revista Sábado
O autor de dois livros premiados sobre vinhos portugueses já foi cantor de ópera, segurança e guia turístico. Hoje é um dos mais respeitados especialistas ingleses e viaja pelo mundo para fazer provas.

Numa prova cega, em Almeirim, o crítico e jornalista de 69 anos avaliou cerca de 140 vinhos do Tejo. É algo que Charles Metcalfe faz há cinco anos - não para publicar os resultados ou distribuir medalhas, mas para passar as suas notas e comentários à Comissão Vitivinícola da Região do Tejo. Para que esta tenha uma perspectiva de fora sobre o estado das coisas e possa definir melhor o caminho a seguir para uma região que já foi conhecida por Ribatejo, que é confundida com frequência com Lisboa e Vale do Tejo e cujos vinhos tardam em libertar-se dos estigmas do passado. O fundador da International Wine Challenge é um dos mais reputados críticos do Reino Unido e um grande conhecedor da realidade portuguesa. "Nos últimos 30 anos tive a sorte de viajar bastante pelo País no contexto da cena vínica", explica à SÁBADO depois de uma tarde de provas.
Chegou pelo almoço e de tarde provou 60 vinhos. Está a ser uma quarta-feira normal para si?
E amanhã provo mais 80! Uma pessoa habitua-se. Lembro-me de uma vez ter ido à região de La Rioja [Norte de Espanha] com críticos ingleses. Chegámos e disseram-nos que tinham 74 vinhos para provarmos. Pensámos: "74? Ok." E respondemos: "Muito bem, obrigado". Os espanhóis ficaram baralhados: "Ouviram bem? Nós temos 74 vinhos..." Nunca tanto vinho tinha sido provado num só dia em La Rioja. Foi a primeira vez para eles, já era normal para nós.

Fundou uma das maiores competições do mundo, a International Wine Challenge (IWC). Aí, em média, prova quantos vinhos por dia?
É uma competição de prova cega que começou comigo e com um jornalista chamado Robert Joseph, em 1983, mas nunca foi nossa - foi tendo diferentes donos. Recebemos cerca de 12 mil vinhos para as provas, que duram duas semanas e acontecem duas vezes por ano. Somos seis co-presidentes do júri e na primeira semana só provamos vinhos que os outros provadores não tenham gostado - somos uma rede de segurança para vinhos que, de outra forma, sairiam de competição.
Lamber rochas para provar vinho
Não parece muito divertido.
É um trabalho duro porque muitos vinhos, simplesmente, não são bons. Durante o IWC provo entre 200 e 300 vinhos por dia. Portanto, provar amanhã mais 80 de produtores do Tejo não é um grande desafio. Já estou habituado. Aprendemos a cuspir de forma muito eficiente.

Durante a prova, as maiores divergências de opinião colocaram-no a si de um lado e os dois provadores portugueses do outro. O paladar inglês é diferente?
Dei por vezes notas superiores às da Joana [Silva Lopes, enóloga da Quinta do Casal Branco] e do João [Silvestre, director da CVRT] porque mesmo que os vinhos ainda não estejam bem aí, acredito que tenham um estilo que se daria bem nos mercados de exportação. Quero encorajar esse estilo em vez de dizer que ainda não é suficientemente bom.

Como surgiu a ideia de publicar um guia sobre os vinhos de Portugal e Espanha (The Wines of Spain & Portugal), em 1987?
Uma amiga disse-me que estava a editar uma série de livros sobre vinho e que gostava que eu e a Kathryn McWhirter - a minha mulher, que também é escritora - fizéssemos um. Havia duas hipóteses: Alemanha e Áustria ou Espanha e Portugal. Foi uma decisão fácil...

Quanto tempo demorou a pesquisa para o livro? Iam e vinham ou fizeram tudo de seguida?
Fizemos muitas viagens em Espanha, mas depois a Kathryn engravidou do nosso primeiro filho e acabei por fazer sozinho a maior parte das viagens a Portugal.

Houve algum vinho ou quinta que o tenha surpreendido?
Demasiados. O Douro é uma região fantástica, merecidamente classificada como Património Mundial da UNESCO. Depois, da Serra da Estrela até ao Dão, com as vinhas altas, tudo é fabuloso. E o interior... a maioria das pessoas que vem fica por Lisboa e pelo Algarve. O coração de Portugal - dramático, lindo - continua por se descobrir.

Em 2007 regressou ao tema em The Wine & Food Lover's Guide to Portugal, vencedor do prémio Louis Roederer International para o melhor livro do ano sobre vinho.
E também incluímos recomendações de restaurantes, de hotéis e de sítios para visitar. Foi mais um guia de Portugal do que sobre vinhos.

Foi uma edição de autor?
Sim. Imprimimos 10 mil livros em Portugal e a ViniPortugal comprou logo mil. Sabíamos fazer livros, tínhamos essa experiência, mas não sabíamos fazer marketing nem vendas. O que fizemos foi contactar os produtores de vinho e sugerir-lhes que comprassem livros para poderem revender nas suas quintas. Quando o livro saiu, em 2007, tínhamos quase metade do stock vendido.

Que diferenças encontrou em relação aos anos 80?
Lembro-me de levarmos imenso tempo a viajar de um lado para outro. No segundo livro já beneficiámos dos financiamentos da União Europeia para as estradas. Lembro-me que em 2003 fui convidado para um jantar de uma confraria na Bairrada e fiquei sentado ao lado de um senhor alemão, muito simpático, que no fim me disse ser a pessoa da UE responsável por decidir quem recebia o dinheiro. Lembro-me de pensar: "Não admira que te tenham convidado para este jantar." Era um homem muito popular. Mas quando penso nas minhas primeiras viagens em Portugal, por exemplo do Porto para Lisboa, levavam-se horas. Apareciam vacas no meio do caminho...

Essas primeiras viagens aconteceram quando?
A minha primeira visita a Portugal foi numas férias com os meus pais, tinha eu 16 anos. A minha irmã tinha uma amiga, cuja família vivia em Sintra, com quem passou duas semanas. Depois estivemos uma semana em Cascais, que na altura era uma vila piscatória. Lembro-me de parar em Óbidos, de visitar o Douro pela primeira vez e de pensar "Uau, isto é simpático", sem alguma vez adivinhar que teria uma ligação mais profunda ao País.

Os seus pais tinham alguma ligação ao mundo do vinho?
Bem, bebiam-no. O meu pai esteve num campo de prisioneiros na Segunda Guerra Mundial e quando voltou empregou-se por pouco tempo no negócio de vinhos. Depois entrou no mundo das finanças, na City, onde trabalhou o resto da vida. Mas sabia o que era bom vinho.

É verdade que o Charles costumava cantar ópera?
Sim, tentei ganhar a vida como cantor de ópera durante 10 anos. Quer dizer, eu estava a ganhar algum dinheiro a cantar, mas na maior parte do tempo ganhava mais a levar americanos a passear pela Europa ou a trabalhar como segurança, cozinheiro ou o que aparecesse.

Como é que um cantor de ópera se torna crítico de vinhos?
Na altura tinha um bom amigo da universidade - com quem cresci a aprender sobre vinho - que era actor e começou a escrever sobre vinhos enquanto trabalhava nas suas peças. Como ganhava mal enquanto cantor, pensei que se ele conseguia, eu também conseguiria. Falei com a única editora que conhecia e perguntei-lhe se podia enviar um artigo. Ela respondeu: "Força, envia. O pior que pode acontecer é eu não o publicar." Levei um mês para escrever 500 palavras. Ela melhorou-o, publicou-o e isso foi o começo de tudo.

Que idade tinha?
Teria 30 e poucos. Depois passei a ser o especialista de vinhos num programa matinal de TV. Embora pagasse pouco, deu-me enorme visibilidade, e como resultado recebi convites para trabalhos muito mais bem pagos. Muitas coisas interessantes na vida acontecem por acaso. Não planeei ser jornalista ou especialista em vinhos. Apenas aconteceu. Tive sorte. Tive uma carreira desestruturada. Acho que o importante é aproveitar as oportunidades que aparecem.

Lembra-se da primeira vez que provou vinho português?
Vou dizer algo terrível: provavelmente não, porque terá sido naquelas férias quando tinha 16 anos.

Portanto, há já 53 anos ...
Tenho sorte, porque o meu pai perdeu o olfacto aos 60 e tenho um amigo que o perdeu aos 40. Tenho 69, mas o meu continua bom. Aos 50, subitamente, comecei a precisar de óculos; às vezes tenho dificuldade em acompanhar uma conversa numa sala com barulho, mas o
olfacto ainda funciona bem.

Voltando à prova desta tarde: houve um vinho, o nº 31, sobre o qual disse que não nos deveríamos entusiasmar demasiado...
Era um Cabernet Sauvignon. A Joana disse que era um excelente exemplo de um Cabernet do Tejo. Tudo bem. Mas por viver em Inglaterra, que é um grande importador de vinhos de todo o mundo, já bebi grandes Cabernets. O que quis dizer é que o vinho que provámos é um bom Cabernet para o Tejo, mas que não é fantástico comparando-o com os do Chile, da Austrália ou da Califórnia. Todos eles fazem Cabernets melhores. Parece-me que Portugal não tem o clima ideal para esta casta.

Que vinhos deveriam entusiasmar os produtores nacionais?
Portugal tem a sorte de ter tantas castas autóctones maravilhosas - e ainda algumas francesas que funcionam bem. Da Alicante Bouschet, por exemplo, pensa-se que é portuguesa mas na verdade é francesa.

Tem origem nas invasões francesas do século XIX...
É verdade. Já faz parte de Portugal e na verdade faz vinhos melhores cá do que em França. Vocês têm uma grande riqueza de uvas nativas...
Noutro dia, em conversa com António Graça, um cientista que estuda as variedades de castas e que trabalha para a Sogrape, ele apresentou-me um estudo que mostra que, geneticamente, as castas daqui sempre foram portuguesas, ao contrário da maioria das castas europeias mais famosas, que vêm do Cáucaso, considerado o berço do vinho há milhares de anos.

As portuguesas são diferentes?
As portuguesas e as espanholas não têm o material genético das uvas do Cáucaso. Começaram aqui, de vinhas selvagens, e aqui continuam. Portugal tem de ensinar o mundo sobre as suas variedades e quão boas são. 

Artigo originalmente publicado na edição n.º 743, de 26 de Julho de 2018